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A Alfabetização do Silêncio

O som. Nós somos apaixonados pelo som. Falamos e ouvimos o tempo todo. Quase não vivemos sem música e ruído. Interrompemos as brincadeiras silenciosas de nossas crianças com nossas palavras e quando alguém está em silêncio perguntamos: No que você está pensando? Está tudo bem?

No som, temos segurança. Na ausência dele, sentimos perigo. Mas o som não é tudo o que há. Há o seu avesso. E se o som é infinito e são possíveis infinitas combinações de ruídos e notas musicais, também é assim no silêncio.

Há o silêncio da concentração, o da alegria imensa, o da serenidade contente, o da tristeza, o da saudade, há o silêncio de quem não sabe o que dizer e de quem não pode dizer o que sabe, há o silêncio finalmente alcançado e o silêncio forçado sobre nós. Há milhões e milhões de silêncios, como há milhões e milhões de palavras. Então, assim como existe uma alfabetização das palavras, um vocabulário sonoro, deve haver um vocabulário silencioso e uma alfabetização do silêncio.

Quase não existe saída, o barulho está em toda parte. O barulho vem de fora de nós, da TV, dos celulares, das vozes, e de dentro de nós, do pensamento que nunca pára, da nossa eterna playlist interior. Quase não dedicamos tempo a nos alfabetizarmos sobre o silêncio. Isso prejudica nossas relações com os outros e conosco, interfere na nossa paz e cria rachaduras na nossa consciência do que está acontecendo agora.

O silêncio pode ser duas coisas principais:

Primeiro, o silêncio pode ser a ausência do som. Esse é só um primeiro e pobre passo. Pode ser forçado, e aí é triste. Existe o silêncio do que é proibido dizer. Às vezes um olhar nos cala, um sinal de mão, uma cotucada, uma ameaça, um medo.

Então, vamos chamar esse primeiro de silêncio do medo. O silêncio do medo aparece quando não falamos porque alguma coisa externa ou interna pode acontecer. Nós, se falarmos, teremos de enfrentar monstros dentro ou fora de nós.

Nossas crianças habitam o silêncio do medo com mais freqüência do que deveriam. Não falam porque mandamos que calem, ou porque temem reprimenda. Esse é o silêncio pai da mentira. Primeiro nada se diz, e depois nesse silêncio venenoso tudo se transforma, a realidade assume uma forma menos ameaçadora, e a mentira nasce. Esse silêncio deforma a linguagem, que deveria expressar a maior verdade de nós mesmos, e passa a expressar o que os outros querem ouvir. O silêncio do medo é perigoso. Mas existe algo mais perigoso que ele.

O silêncio do medo muitas vezes se esconde debaixo de uma camada de sons. Desenhos animados, joguinhos, música demais, séries de TV, conversas artificiais. E aí não precisamos falar aquilo e vamos falando outras coisas. Até ter que olhar o silêncio do medo, e usar algum artifício para dormir rápido.

Felizmente, o silêncio do medo tem um irmão. Um irmão protetor, maior que ele, que pode cuidar dele. Um irmão infinito. Claro, ele é o silêncio da coragem.

O silêncio da coragem é selvagem. Nunca sabemos o que vai sair dele. É nele que habitamos quando, um instante antes de convidar o filho para o banho de esguicho, já nos alegramos com a transgressão. Quando, logo antes de um abraço, já nos alegramos com o carinho. O silêncio da coragem é a selva que nós somos antes de domesticarmos tudo para falar.

As nossas crianças podem habitar também esse silêncio. Quando ficam em sua brincadeira até terminarem, sem nenhuma interrupção. Quando descobrem um bicho no jardim e não nos tem aos ombros perguntando o que foi que acharam. Quando sentem a água da pia nas mãos sem precisar fechar a torneira já. Quando estão tristes e podem ficar tristes até a tristeza fazer sentido e então, devagar, ir embora. Tudo isso é um imenso suspense. É estar no espaço vazio e imenso do agora, sem saber quando ele vai acabar.

O silêncio da coragem é o que dá origem às nossas palavras mais verdadeiras. As decisões importantes e corretas, as declarações profundas, os manifestos contundentes nascem todos do silêncio da coragem. Um silêncio selvagem que perde todo o seu potencial se for domesticado. Precisa ser selvagem, até que nós atravessemos a selva e possamos trazer um pouco dela – daquela imensidão da selva – para o dia-a-dia das nossas vidas. A criança faz isso o tempo todo, se nós deixarmos.

Precisamos aprender a ficar em silêncio, habitar com ele, ouvir a selva, ouvir o medo. Precisamos ajudar nossas crianças no processo de alfabetização também. Basicamente, nós só precisamos dar espaço, para elas irem e voltarem da selva. E permitir que elas tragam da sua selva o que quiserem. E não amedrontar.

A alfabetização no silêncio pode ser longa. Demora para a alfabetização virar fluência, proficiência. E tudo bem. Ser alfabetizado já é grande, e já ajuda a fazer sentido dos tipos de silêncio que habitamos. Uma vez que nos alfabetizamos no silêncio, é como aprender a ler: todo o mundo que não conhecíamos se revela. E nós vivemos com mais essa parte do mundo. E viver com mais um mundo é ter mais uma chance. Um mundo novo para as nossas relações, a nossa família, as nossas vontades e as nossas emoções.

É uma selva, algumas vezes. Em outras é uma luz iluminando de um jeito novo caminhos antigos, nos permitindo descobrir o caminho todo novamente. O silêncio é um dos caminhos mais belo e tranqüilo para a paz.

Gabriel Salomão

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