J. tinha menos de dois anos, e já eram duas da madrugada. Todos estavam dormindo, mas a mãe dele ouviu um barulho no corredor e foi dar uma olhada. J. tinha saído do quarto e estava andando na direção da sala. A mãe decidiu não interromper. Ele foi até a cozinha. A mãe sem interromper. Ele abriu o armário e pegou um copo. A mãe se segurou. Ele encheu o copo d’água, bebeu, colocou o copo na pia e se virou para voltar. A mãe se escondeu. Ele voltou, deitou-se e dormiu de novo. A mãe, feliz porque não tinha interrompido nada, entendeu que as crianças podem mais do que nós imaginamos, mesmo às duas da madrugada.
Cem anos atrás, quando começava a primeira escola de Maria Montessori, ela também tinha dúvidas sobre as crianças, e por isso os materiais ficavam fechados num armário e eram entregues pela professora aos alunos. Mas um dia ela chegou atrasada, e os alunos haviam aberto o armário e, com a ajuda de uma cadeira, acessaram todos os materiais, os escolheram livremente, e começaram a trabalhar.
Foram as crianças que mostraram que elas mesmas precisavam de liberdade de escolha para alcançarem um bom desenvolvimento.
Não poderia ter vindo de um adulto. A idéia, o princípio mesmo, de que o adulto devesse se retirar para dar lugar à criança, nunca poderia ter vindo do adulto.
Maria Montessori, 1942
Hoje, a idéia de que devemos respeitar as escolhas das crianças, e a habilidade delas de fazer escolhas e lidar com as conseqüências, é uma noção mais comum. Mas por que devemos fazer isso? O que acontece com o desenvolvimento das crianças quando elas podem escolher?
1. Desempenho
Estudos realizados nos últimos quarenta anos apontam que crianças (e até mesmo adultos!) que podem fazer escolhas durante a realização de uma tarefa costumam ter resultados muito melhores no que fazem. Faz sentido, não é? Se podemos controlar até mesmo coisas mínimas, como o lugar onde vamos trabalhar, isso influencia bastante nosso desempenho.
2. Persistência
Pode parecer inacreditável, mas quando uma criança escolhe uma atividade, é capaz de permanecer nela por até quatro vezes mais tempo do que uma criança que faz a mesma atividade, mas sem escolher – é a diferença entre 15 minutinhos e uma hora inteira de esforço e concentração.
3. Motivação
Nesse caso, nem é necessário apresentar um estudo (embora ele exista). Quem escolhe o que vai fazer se dedica com mais vontade. Se outra pessoa escolhe por nós, somos até capazes de fazer, mas a vontade é muito menor, e talvez por isso o impacto sobre a persistência e o desempenho seja tão grande.
4. Felicidade
Desde a infância até a idade adulta, explica a psicóloga cognitiva Angeline Lillard, a sensação de controle sobre o ambiente tem efeitos positivos sobre o bem estar humano, enquanto que a falta desse controle tem efeitos negativos. E isso é verdadeiro tanto para a casa quanto para a escola. Se queremos que nossos filhos sejam felizes, devemos oferecer a oportunidade de fazerem boas escolhas.
5. Menos problemas emocionais
Um estudo de 2018 mostrou que mesmo antes dos seis anos de idade é possível perceber que crianças que podem fazer mais escolhas, mesmo que tenham de lidar com conseqüências desagradáveis das escolhas que fazem, desenvolvem um equilíbrio e um controle emocional e social melhores. Na adolescência, uma vida inteira de escolhas e conseqüências, em vez de proteção e passividade, fazem toda a diferença, e influencia bastante o desempenho acadêmico e o comportamento dos adolescentes.
6. Conseqüências para a Vida Adulta
Um outro trabalho, este de 2016, encontrou uma relação importante entre a saúde física e o bem-estar de adultos e o estilo de criação que tiveram na infância. Adultos que foram criados de forma menos controladora, e com mais suporte para o desenvolvimento da autonomia, com permissão para fazerem escolhas e lidarem com as conseqüências delas, tornaram-se adultos mais felizes e mais saudáveis do que os do outro grupo.
Não faltam motivos para alimentarmos em nossas crianças a habilidade de fazer escolhas e o equilíbrio emocional para isso. Às vezes nos falta a disposição. A boa notícia, neste caso, é que quanto mais permitimos que as crianças façam escolhas (dentro das opções que são saudáveis para elas), melhores elas ficam nisso, e vai ficando mais e mais fácil para nós, adultos.
Podemos terminar com uma pergunta de Montessori:Você alguma vez deu ao seu filho, mesmo que só por um dia, a oportunidade de fazer o que ele quisesse, sem interferência? (Maria Montessori)
Gabriel Salomão