Olhe para o seu filho. Levando um copo d’água até a boca pela primeira vez. Se ele for muito pequeno, recorde-se de quando ele conseguiu acertar um móbile com a mão pela primeira vez também. Lembre-se de como ele tentou de novo, e outra vez. Dos erros e acertos, e da vontade de continuar. Da lentidão, dos fracassos, das inúmeras tentativas. Tudo isso pode passar despercebido para um adulto. Mesmo para um adulto que ame. São mistérios da criança, e segredos que ela guarda.
A criança é apaixonada pelo insignificante. Nós nem sempre entendemos isso bem, e tentamos mostrar a ela o mais interessante. Ela tenta colocar as meias oito, nove vezes. Nós nos mordemos de pena, e colocamos as meias para ela. Ela reclama, chora. E nós explicamos que agora ela vai poder ir para o parquinho! Correr! Brincar! Ao nosso olhar, isso é tão mais interessante do que colocar as meias.
Mas a criança é apaixonada pelo insignificante. E ela é lenta no insignificante. Em lugar de abotoar logo sua camiseta, demora. Em vez de se pentear rápido, vai muito devagar. E quando termina, a linha na cabeça parece um labirinto. E nós, cheios de constrangimento porque nossa filha vai ser vista com os cabelos tortos, nos compadecemos e ajudamos, penteamos de novo. E ela reclama: “Eu já penteei” e nós somos gentis: “Eu sei, filha, eu estou só…” Só o quê? Corrigindo. Só acertando. Só deixando perfeito.
Mas a criança não é perfeita. Ela está no caminho da perfeição. E é apaixonada pelo caminho. Por cada passo dele.
Quando falamos de respeito ao ritmo da criança podemos entender isso como geralmente entendemos: cada criança tem um ritmo…
Mas existe um outro jeito, melhor, mais profundo, mais revolucionário.
A criança tem um ritmo completamente diferente do ritmo do adulto. E é essa diferença que precisa do máximo respeito.
A criança é lenta e excessivamente repetitiva. Esse é seu ritmo.
O adulto já sabe fazer as coisas, e agora ele só reproduz o que já sabe. Mas, ao contrário do que pensamos, a criança não está só aprendendo. Ela está criando. Um ser humano inteiro. Habilidade por habilidade. Abotoar, dar laço no sapato, levar o copo até a boca, acertar o móbile, abrir uma gaveta, comer. Ela está construindo cada habilidade. Fazendo as conexões cerebrais necessárias. Criando.
E, claro, o trabalho de criação do ser humano é mais longo, mais demorado e mais repetitivo do que o trabalho de reprodução.
Por um instante, pense no Davi, de Michelangelo:
Quando Michelangelo esculpia, a seu ver, ele não impunha uma forma a uma rocha. Ele libertava a estátua dos obstáculos que a impediam de aparecer. A criança faz a mesma coisa: liberta-se dos obstáculos que a impedem de ser um ser humano com plena capacidade de ação.
É muito mais fácil copiar Davi do que libertar Davi pela primeira vez. O ponto é que para a criança é sempre a primeira vez. Por isso ela é repetitiva, e lenta, e por isso ela se dedica com muito mais intensidade do que o adulto a tudo o que faz.
Nós temos mais facilidade em lidar com o descontrole da criança, a velocidade dela. Quando a criança é extremamente rápida, derruba coisas, e faz barulho, dizemos a nós mesmos: Crianças são assim. Mas quando a criança demora, repete, tenta de novo, fracassa, se esforça, nós não pensamos que Crianças são assim. Pensamos que ela precisa de ajuda.
Ela precisa. Mas a maior ajuda que a criança pode receber só pode vir de um adulto treinado na paciência.
Imagine o tédio, o desespero e a confusão de quem observasse Michelangelo dar as primeiras marteladas que libertariam Davi.
Agora, imagine o encanto de quem o viu dar as últimas marteladas.
Agora, imagine o encanto de um escultor treinado, que o visse dar as primeiras, e permanecesse lá, observando, em silêncio, até a última.
Esse é o adulto de que a criança precisa. Um que a deixe trabalhar em paz, libertando-se de cada obstáculo, até que esteja satisfeita. Um adulto que não a corrija, que espere mais, que permita a repetição, e que assista, em silêncio, paciência e reverência, ao enorme trabalho de criar um ser humano.
Criar um ser humano é muito mais difícil do que libertar Davi de um pedaço de rocha. O maior trabalho da humanidade é feito pelas menores mãos. Elas trabalham em outro ritmo. E é este ritmo que precisamos compreender e respeitar.
Gabriel Salomão