Nós desejamos que as crianças desenvolvam personalidades fortes e independentes, que sejam autônomas e conscientes em suas escolhas. E procuramos sempre as maneiras de educá-las que ajudem na construção dessa personalidade.
Existem comportamentos adultos que ajudam a criança a construir sua própria personalidade, e comportamentos que fazem com que a criança absorva a personalidade do adulto, em vez de formar a sua, e levam a uma substituição da personalidade, nas palavras de Montessori. Neste texto vamos entender como isso funciona.
O Amor pelo Ambiente
As crianças amam o ambiente em que vivem, não com um amor sentimental, mas com um amor psíquico. Elas absorvem o ambiente, formam-se a partir dele, e se formam para ele. As crianças prestam muita atenção ao ambiente e é no ambiente que elas encontram as pistas sobre o que devem fazer e como devem ser.
Por isso, aquilo que a criança encontra no ambiente é da maior importância. Ela vai usar tudo. Vai usar mais ainda se aquilo que ela encontrar vier das pessoas que ela mais ama no mundo: seus pais, ou os adultos responsáveis por ela.
A Substituição da Personalidade
Alguma influência dos pais sobre os filhos é inevitável. Eles falam nossa língua, acostumam-se à nossa comida, e escutam a música que nos agrada. Mas, a depender de nossas ações, eles podem absorver muito mais do que isso, e essa absorção não é sempre boa.
Em minha casa, minha família tinha muito medo de pessoas entrarem em nossa casa. Ladrões, criminosos de todo tipo. Esse medo de alguém entrar em casa (apesar dos poucos motivos que alguém teria para isso) nos levou a morar em casas muito bem trancadas e de muros muito altos. Isso nunca me impediu de ter pesadelos, que duraram décadas, envolvendo roubos, assaltos e assassinatos, sempre com alguém entrando em casa à noite.
Eu nunca fui de ter outros pesadelos (hoje em dia, eu sonho que perco vôos para os Cursos Montessori), mas esse pesadelo, de pessoas entrando em casa, e um tremor de corpo inteiro quando escuto qualquer som no meio de uma noite de trabalho… Isso é uma parte da minha herança emocional.
As crianças não herdam só a paixão por Beetles e por cravo nos doces. Elas levam a personalidade dos pais no pacote, se nós não tomamos cuidado.
Crianças muito pequenas deixam isso especialmente claro. Um dia a criança, com dois anos, vê a mãe colocando copos em cima da mesa, virados para baixo. Dois dias depois, ela encontra copos virados para cima na mesa e os vira para baixo, um a um. Não é só o gesto, mas a percepção de como o mundo deve ser que a criança herdou da mãe naquele instante. E é isso que ela herda sempre.
Como Ajudar Nossos Filhos a Terem a Própria Personalidade
É claro que teremos influência sobre nossos filhos. Voluntária e involuntariamente. E está tudo bem. O cuidado que devemos ter não é para excluir a influência completamente, mas para editar essa influência. Escolher um pouco melhor o que desejamos passar a diante.
A melhor maneira de fazer isso é reconhecer os nossos impulsos e emprestar consciência a eles. Em vez de agir e falar por puro impulso, prestar atenção, e agir por escolha, falar por escolha.
Nós podemos fazer uma lista dos nossos maiores medos, das nossas maiores vontades, daquilo que criticamos nos membros da nossa família, daquilo que elogiamos publicamente. Podemos listar nossos desejos, ambições, repulsas. E então nos conheceremos um pouco mais.
Podemos pedir a nossos cônjuges que nos digam quais traços e ações são típicas nossas. É o jeito como fechamos a porta do carro? A fala rápida e acelerada? A tolerância com o comportamento dos outros? E conheceremos mais um pouquinho.
Quando nos sentirmos muito felizes, ou muito tristes, ou muito temerosos, ou muito bravos, podemos tomar nota, mentalmente, do motivo de nossa mudança emocional. E saberemos mais de nós mesmos.
Aos poucos, esse processo de descoberta de si mesmo leva a um comportamento menos impulsivo, mais escolhido, mais consciente. Isso não quer dizer que ele seja menos natural. Ele só é seu de verdade, e não de um inconsciente que você não controla.
Além disso, é claro, há o mais importante: precisamos deixar nossos filhos existirem. Se eles gostam de flores, e nós de parafusos, precisamos parar na rua quando houver flores, e conversar sobre flores com eles. Se eles lavam as mãos muito devagar e fazendo muita espuma, é preciso permitir. Se gostam, nas últimas duas semanas, de passar minutos amarrando os tênis, isso é importante, e a formação de uma personalidade autônoma passa por ações autônomas.
Precisamos ficar mais em silêncio, agir menos e permitir mais. As crianças estão sempre atentas ao ambiente à sua volta, e é assim que colhem matéria-prima para a construção do eu. Mas o eu se constrói de verdade, não quando as crianças absorvem a matéria-prima, e sim quando elas agem, usando a matéria prima para a construção autônoma da personalidade. Maria Montessori descobriu os segredos da criança, e abriu caminho para uma convivência melhor e mais pacífica entre adultos e crianças.
Gabriel Salomão